quarta-feira, 4 de abril de 2012

O menino. De Chico Anysio.



O texto abaixo estava inédito segundo o Jornal O GLOBO. E trata-se de um texto autobiográfico.
Muito criativo, inteligente e tocante.
Me peguei emocionado ao ler em voz alta e projetada, tentando interpretar cada palavra e buscando projetar-me nas vivências deste menino.
E eu pude fazer um pequeno processo "Stanislaviskiano" ao relembrar de minha infância com pés descalços na "terra quente" das calçadas do Bairro Parque Araxá em Fortaleza dos anos 70 e 80.

E lá vou eu me vendo a sentir lembrar das árvores de castanholas, do picolé derretendo e melando a mão, do "31 salve todos", das casas de muro baixo, dos jardins floridos expostos aos olhos dos passantes,  do tocar a campainha e sair correndo, da Vila Sésamo, Do Sítio do Pica Pau Amarelo, das Aventuras do Tio Maneco, da Turma do Lambe-Lambe do Daniel Azulay, do jogo de futebol no calçamento tendo o portão de ferro vinho como a trave do maracanã, dos passeios de bicicleta Caloi por todo Bairro da Parquelândia, dos passarinhos nos pergolados de minha casa...Enfim, eu acho que também fui um pouco daquele Menino do Mestre Chico Anysio.

Obrigado Chico Anysio!

Segue  o texto:

O menino, de Chico Anysio

"Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.

Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.

Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.

Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.

Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.

Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.

Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga.

De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.

Tímido até a ousadia, seus silêncios gritam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.

Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.

Mas usava calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.

Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador de jeito que ele é, não duvido nada.

Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.

Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todos os dias.

Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim".

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